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Uma visão da Grande Jóia no Lótus

Publicado em Artigos - Budismo, Artigos - Psicologia, Crônicas
Niterói, 1991


Uma noite, no consultório, após quatro anos, uma antiga paciente retorna à análise.

Nosso espaço terapêutico tivera sido contaminado por uma série desagradável de acontecimentos – coincidências, malentendidos, difamações – que terminaram por levar a uma abrupta interrupção do tratamento.

Depois de uma busca infrutífera por outros consultórios na tentativa de resgatar o espaço perdido, tornou-se claro para ela a intensidade da transferência não resolvida e decide-se, então, ainda confusa, a procurar-me novamente. Segue entregando-me, aos poucos, seu repertório de desconfianças e intrigas que poderiam ter destruído para sempre quaisquer resquícios do bom conceito que um dia merecera de sua parte.

* * *

Durante o seu relato emocionado fui me dando conta de uma imagem muito sutil que delicadamente tomava forma dentro de mim. Era qual uma flor, lenta em seus movimentos, e emergia quase imperceptível da obscuridade.

Ao percebê-la, temi que se desvanecesse como um frágil sonho, mas para minha surpresa, sem que perdesse a delicadeza, aquela imagem tornou-se ca vez mais intensa a ponto de conservar-se a si mesma em minha fantasia sem que eu pudesse ter sobre ela qualquer controle.

Percorreu-me um espanto! Emocionei-me e soube, num repente, que estava posto diante da Jóia Mani e do Lótus onde ela repousa. As duas imagens de que fala o popular mantra tibetano "Om Mani Padme Hum" (Salve a Jóia no Lótus)!

Era algo como uma pequena chama, de um violeta claro em sua base e muito branca no seu ápice. O violeta ia clareando suavemente à medida que atingia o ápice, mas na base distribuía-se como que revelando as pétalas de um Lótus diáfano, imprecisas, pouco definidas, levemente esboçadas.

Não era uma chama que tremulasse. Irradiava uma espécie de luz brana, como se radioativa ou fosforescente. Parecia um cristal, uma jóia mesmo e tinha uma forma quase de gota. Seu ápice não era pontudo, mas arredondado. O espaço em volta rea completamente escuro. Próximo à luz podia perceber algumas formas, contornos caóticos, que sugeriam cacos, restos, destroços, coisas que se romperam e não puderam destruir a Jóia.

Ela também parecia viva, um ser vivo, uma gema, um filho.

Uma pequena stupa, um pequeno lingam, um pequeno Buda.

* * *

Lembrei-me de outras tantas estórias, quando percebia um vínculo mais profundo que resistia a quantas destruições, e renascia sempre de algum rizoma silencioso a hibernar subterrâneo e calmo à espera de um necessário calor, da luz suficiente, e de outros tempos e melhores.

Via o Lótus limpíssimo a emergir de seu imundo pântano.

Beleza que brota na escuridão do sofrimento.


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